Acho que
nunca escrevi um artigo em estado de maior indignação. O que se passa em Gaza e
no território da Autoridade Palestiniana convoca não só a política, a
geopolítica, as relações de forças entre Estados, o mundo do “Ocidente” e do
Oriente, todos os conflitos em curso, o “Sul global”, o papel das Nações
Unidas, mesmo o direito internacional, convoca tudo o que quiserem, mas tudo
está abaixo de um repto moral, de uma obrigação de falar, de um dever de
protestar e atuar perante um massacre cruel, diante dos nossos olhos, de um
povo, o palestiniano.
Só conheço
uma comparação para esta indiferença, vergonhosa e também, ao mesmo tempo, a
mais certeira e, num certo sentido, a mais diabólica: o encolher de ombros de
todos os que sabiam que o Holocausto estava em curso – e havia muitos altos
responsáveis entre os inimigos dos alemães que sabiam – e nada fizeram.
E não me
venham com a história do antissemitismo, que é um argumento insultuoso para
justificar os crimes de Israel, da mesma natureza que o canto “desde o rio até
ao mar” serve para justificar o massacre do Hamas. Estão bem uns para os
outros.
Já sabemos
que tudo começou com um massacre perpetrado pelo Hamas e que devia ter uma
resposta israelita dura, como teve. Mas o que se passa nos dias de hoje é outra
coisa, é outro patamar político, racial, nacional, que nada tem a ver com uma
resposta com qualquer racionalidade militar para combater o Hamas. É uma
política de destruição em massa de um povo e do seu “lugar”, e conheceu mais um
agravamento na semana passada, com o anúncio da anexação de mais uma parte do
território de Gaza ao Estado de Israel. Trata-se, certamente, de preparar a
“Riviera” que um Presidente demente diz querer fazer. Bastava esta declaração
de Trump, com a aquiescência cínica e interesseira de Bibi, para nós
percebermos o grau de loucura que está à frente da maior potência mundial.
Ah! Sim,
muita gente diz-se preocupada todas as vezes que Trump abre a boca, ou move as
mãos para fazer aquela assinatura infantil em mais uma ordem executiva à margem
da Constituição e dos poderes do Congresso, mas isso não chega. Em particular,
não chega para a hipocrisia moral de muitos países da União Europeia, como
Portugal, que nem sequer o passo de reconhecer o Estado palestiniano são
capazes de dar. É uma atitude quixotesca? Se for levada a sério, com a
instalação de embaixadas no novo Estado, a assinatura de acordos económicos,
políticos e militares, com um Estado soberano, então a coisa fia mais fino.
Acresce que Israel, violando todas as regras do direito internacional,
conduzindo um massacre quotidiano, não tem sanções.
No
entretanto, todos os dias se mata gente inocente, crianças, mulheres, velhos,
sem sequer qualquer racionalidade militar que não seja destruir, matar ou
atirar para fora da sua terra milhões de pessoas, para depois terraplanar as
ruínas e lá instalar colonos israelitas, os mesmos que andam também a matar
palestinianos nas terras da Autoridade Palestiniana, a base eleitoral dos
partidos da extrema-direita que estão no governo de Bibi. Quem acredita que o
que Bibi quer é dar a Trump os hotéis de luxo e as praias da costa de Gaza para
fazer vários Mar-a-Lago, e que alguma vez alguém vai lá por o seu rico dinheiro
para fazer uma estância turística, rodeada, por terra, por três muros e um
pequeno exército de segurança e, por mar, por patrulhas em lanchas, está tão
demente como Trump. Não é o caso de Bibi que quer outras coisas, todas locais,
todas no Médio Oriente, todas culminando num ataque ao Irão. Para isso, ele até
é capaz de construir a tal Riviera vazia de gente, como as aldeias Potemkin em
cartão, deslocadas de quarteirão em quarteirão, para a glória de Trump e
depois, conseguindo o que quer, trazer o seu eleitorado de extrema-direita para
tomar banho na sua Riviera.
E, já agora,
não convinha perguntar, em plenas eleições, algo de verdadeiramente importante
ao PS, ao PSD, ao CDS, ao Chega, por aí adiante, se, chegando ao Governo, estão
dispostos a reconhecer o Estado palestiniano, estão dispostos a impor sanções a
Israel e a usar todos os meios ao dispor de um Estado da União Europeia para
punir os criminosos? E, para além disso, o que é que eles acham do que se está
a passar com as crueldades de Israel em Gaza?
As respostas
seriam até uma razão bem mais sólida e moral para decidir o voto.
In Público, 10/05/2025